Em 2006, Digníssima esteve nos EUA e me trouxe uma edição de capa dura de Behind The Mask, a biografia autorizada do Kiss, já lançada no Brasil. Sim, eu sou fã de carteirinha da banda há décadas.
Como toda biografia autorizada, é aquela platitude adulatória. Mas a segunda parte do livro é realmente interessante. Os músicos (além de produtores e demais profissionais envolvidos) comentam praticamente cada faixa dos discos da banda. Entre curiosidades, trivialidades e Gene Simmons detonando impiedosamente ex-colegas, chamou-me a atenção como a banda renega de forma explícita dois discos: Music From The Elder e Carnival Of Souls. Chamou-me a atenção principalmente porque eu gosto muito de ambos.
Nos dois casos, o motivo alegado para renegarem os discos é: não são Kiss, não se enquadram no estilo da banda. O primeiro foi uma tentativa de fazer um álbum “conceitual”, no estilo dos grupos progressivos dos anos 70; o segundo, uma tentativa de pegar carona na onda “grunge” que já fazia água na metade dos anos 90. Mas isso é cascata. Os motivos reais foram que o primeiro foi um fracasso de vendas e o segundo não se enquadrava no projeto de marketing da banda.
Se esse papo de “não ser Kiss” fosse sério, eles teriam que renegar os dois compactos de maior sucesso comercial que tiveram. O primeiro, sétimo lugar na parada da Billboard, foi “Beth”, uma balada melosa com arranjo à la Ray Conniff, cantada pelo baterista original, Peter Criss. O segundo, décimo primeiro lugar, foi “I Was Made For Loving You”, composta por Paul Stanley com a explícita intenção de faturar na febre da discoteca no fim dos anos 70. As duas, definitivamente, não são o estilo do Kiss, e, diferentemente dos álbuns renegados, sequer são rock.
A questão é que Simmons e Stanley, a partir do fim dos anos 70, passaram a prestar muita atenção no que estava “na onda” e correr atrás. Por incrível que pareça, o alcoólatra e farrista Ace Frehley era, naquele momento, a pessoa mais lúcida da banda, insistindo que o Kiss deveria investir pesado no hard rock que fez Alive! vender mais de três milhões de cópias. Em vez disso, fizeram a dita incursão na discoteca, no disco Dynasty, totalmente pop.
Eu fico surpreso que macacos velhos como Stanley e Simmons não tenham se dado conta que o sucesso no mercado pop (nos EUA chamado “top 40”) costuma ser o beijo da morte para bandas de rock. Público pop não é fiel ao artista, compra o que está na moda, ouve enquanto está na moda e depois esquece. Ao procurar “ampliar o público”, o que o Kiss conseguiu foi alienar seus fãs tradicionais para atingir uma audiência fugaz. Tanto que o disco seguinte, Unmasked, igualmente pop, afundou feito pedra.
Ace Frehley insistia numa retomada do rock pesado, aproveitando a entrada de Eric Carr, baterista de pegada mais heavy. Foi voto vencido, e o resultado foi The Elder, que vou comentar um pouco mais adiante.
O fracasso de The Elder deixou o Kiss meio que num beco sem saída, ou melhor, com uma saída só: peso. E peso num vôo cego. Como eu disse, desde 1978 o Kiss procurava seguir o que a moda ditava, só que a moda não lhes ditava nada naquele momento. Os fracassos dos dois discos anteriores haviam mostrado que eles não era uma banda pop nem uma banda progressiva. Eram uma banda de rock pesado. Finalmente a ficha da sabedoria de Ace caiu – mas, paradoxalmente, Ace estava deixando a banda.
Mas qual o modelo a seguir? Aí é que tá. Em 1981 não havia modelo seguro, especialmente nos EUA. As grandes bandas dos anos 70 tinham acabado ou estavam num hiato, as bandas que dominariam a década (Iron Maiden, Metallica, Mötley Crüe etc.) ainda estavam muito no início. Sem ter muito como olhar para o lado, o Kiss precisou contar somente com o próprio feeling. O resultado foi Creatures Of The Night, seu mais pesado e, na minha opinião, melhor disco. Pena que era o disco certo na hora errada. O público estava cansado do Kiss.
Paul Stanley diz que o fato de Lick It Up, o disco seguinte, ter estourado é a prova de que as pessoas “ouvem com os olhos”. Embora muito bom, não faz frente a Creatures, trazia a banda sem maquiagem e vendeu feito pão quente. O engraçado é que o sucesso desse disco (e a boa qualidade do anterior) não parece ter dado ao Kiss confiança no próprio taco, pois logo logo eles voltaram a imitar o que os outros estavam fazendo. Primeiro, a onda de guitarristas debulhadores, com Mark St. John tocando duzentas notas por segundo em Animalize; depois, para minha tristeza, um mergulho no hair metal mais boiola, nos três únicos discos deles que eu nuca comprei em CD: Asylum, Crazy Nights e Smashes, Thrashes & Hits.
A banda só voltou aos eixos com Revenge, de 1982, mais um disco fundamentalmente pesado. O álbum de estúdio seguinte foi o mal-falado Canival Of Souls. Bem, aqui estão os dois banidões.
Music From The Elder (1981)
A “culpa” por The Elder lembra um pouco a propaganda do biscoito Tostines – vende mais porque está sempre fresquinho ou está sempre fresquinho porque vende mais? Gene Simmons e Paul Stanley dizem que o disco conceitual era uma “visão” do produtor Bob Ezrin, que os conduzira na gravação de Destroyer seis anos antes. Só que a história do disco era baseada num conto que Gene Simmons escrevera e queria transformar num filme. Além disso, Ezrin acabara de produzir o genial The Wall, do Pink Floyd. Se a idéia não era produzir um disco conceitual porque trazer aquele produtor e já levar para ele o conceito pronto? É mais fácil botar a culpa na “visão” de Ezrin.
Mas o disco está longe de ser ruim. A única música que me parece um grande equívoco é “Odyssey”, mais por conta do arranjo pretensioso – é a única canção, aliás, que não foi composta pela banda. Ezrin a trouxe – e essa culpa é dele mesmo. Mas, fora isso, “The Oath” e “I” são excelentes rocks pesados, “Mr. Blackwell” tem tudo a ver com a persona de Gene Simmons, “Dark Light” é uma excelente música de Ace (valorizada pela letra de Lou Reed) e a balada “A World Without Heroes” é muito menos brega que “Beth” ou que as cometidas por Paul Stanley na fase hair metal. E, para coroar, tem um raro instrumental particularmente inspirado: “Scape From The Island”, gravado por Ace, Eric Carr e Bob Ezrin no baixo. Qualquer uma dessas músicas ficaria bem nos dois discos seguintes do Kiss.
Descontando “Odyssey” e a vinheta “Fanfare”, sobram três músicas que, realmente, não tem nada a ver com a banda. Só que elas são boas. “Christine Sixteen” e “Hard Luck Woman” (que Paul Stanley compôs para oferecer a Rod Stewart) também não tem nada a ver com a banda, e nem por isso são enxovalhadas.
Repetindo, o único pecado sério de The Elder foi ter vendido pouco.
1. Fanfare
2. Just A Boy
3. Odyssey
4. Only You
5. Under the Rose
6. Dark Light
7. A World Without Heroes
8. The Oath
9. Mr. Blackwell
10. Escape from the Island
11. I
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No vídeo, o clipe de “A World Without Heroes”.
Carnival Of Souls (1997)
Ao contrário de The Elder, o problema de Carnival Of Souls foi decorrente de uma mudança de planos de Stanley e Simmons. Revenge fora um tremendo sucesso, puxado por um compacto pesado, “Unholy”, direcionado explicitamente às rádios de heavy metal. Mais um disco ao vivo depois e era hora de voltar ao estúdio. Na década de 80, enquanto Simmons investia na carreira de (fraco) ator, Stanley comandara a guinada hair metal da banda. Agora, totalmente comprometido com o grupo outra vez, era hora de o linguarudo ditar o caminho.
Só que no meio do caminho havia um acústico. Em agosto de 1995, o Kiss gravou o ótimo MTV Unplugged, com a participação de Ace Frehley e Peter Criss. O show deu início a intermináveis especulações sobre uma volta da formação original. As negociações estavam realmente em andamento, mas oficialmente, o Kiss ainda era Simmons, Stanley, Bruce Kulick e Eric Singer, e era hora de voltar ao estúdio – se a reunião não acontecesse, eles precisavam de um disco para soltar.
Simmons queria “modernizar” o som do Kiss e via como caminho natural aderir à facção heavy metal do balaio de gatos que imprensa apelidou de grunge, no caso, Alice In Chains e Soundgarden. Bruce Kulick, guitarrista oficial da banda desde 1984, concordava e via nisso uma chance de mostrar mais seu trabalho. O produtor escolhido foi Toby Wright, exatamente por sua experiência com Alice In Chains e Slayer.
O disco é, provavelmente, o mais pesado da banda desde Creatures, embora falte aqui e ali aquele humor negro sacana típico das composições de Simmons. Por outro lado, há anos eles não ousavam tanto em arranjos, com destaque para minha favorita no disco, “Childhood’s End”, cujo nome Simmons tirou de um conto de Arthur C. Clarke. Francamente, quem ouve “Unholy”, “Spit” e “Thou Shalt Not”, as faixas mais pesadas de Simmons em Revenge, não se surpreende tanto com Carnival. Da mesma forma, três das melhores músicas de Psycho Circus - “Whitin”, “Dreaming” e “Journey Of A Thousand Years” – são totalmente coerentes com o clima do disco renegado.
Só que a reunião aconteceu. Em 28 de fevereiro de 1996, semanas depois de terminadas as gravações de Carnival, Simmons, Stanley, Frehley e Criss apareceram maquiados na entrega do Grammy. A volta do Kiss original era um fato, e todas as atenções estavam voltadas para a nova turnê, exclusivamente com repertório dos anos 70.
Do ponto de vista mercadológico, lançar um disco com outra formação e outro direcionamento musical era realmente um mau negócio, desviando a atenção e até confundindo o público. Assim, Carnival of Souls foi engavetado. Simmons e (principalmente) Stanley justificaram o engavetamento com a surrada história de “não ser no estilo do Kiss”. Só que as gravações vazaram e começaram a ser transformadas em cassetes e CDs pelos próprios fãs. Logo logo o “disco perdido do Kiss” estava sendo vendido no eBay.
Ora, Gene Simmons nunca foi de deixar os outros ganharem dinheiro com seu trabalho – pelo menos não sem que ele ganhasse também. Se alguém queria comprar, ele deveria vender. Assim, em outubro de 1997, Carnival Of Souls chegou às lojas sem qualquer badalação. O grunge estava praticamente esquecido, substituído pela tosqueria do nu metal.
Se tivesse saído no início de 1996, como previsto, e sem a malhação prévia de seus criadores, acredito que o disco tivesse sido mais bem recebido. Porém, se a minha avó tivesse rodas, ela seria uma carroça. Em Behind The Mask, Paul Stanley diz ter sido contra a gravação do disco, afirmando que o mundo não precisava de um “sub-Soundgarden”. Tá, mas o mundo precisava de um sub-Poison como em Crazy Nights?
1. Hate
2. Rain
3. Master & Slave
4. Childhood's End
5. I Will Be There
6. Jungle
7. In My Head
8. It Never Goes Away
9. Seduction of the Innocent
10. I Confess
11. In the Mirror
12. I Walk Alone
Download
Não foi feito qualquer clipe para esse disco, mas achei imagens das gravações do álbum.
MAGGIE KOERNER-THE BARTHOLOMEW SONGS (2022)
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E esta birosca *brenfoetílicomusical* segue com o firme propósito de
atualizar as discografias de algumas de suas preferências...até porque, sem
querer s...
Há um ano
12 comentários:
Dagda, fiquei impressionado como os nossos gostos batem em relação ao Kiss!
Eu não sou o maior fã da banda, mas acho que o 1º disco, Revenge, o Acústico e o Psycho Circus são grandes álbuns, mas o que mais me surpreendeu ouvindo os discos do Kiss, foram justamente Music From The Elder e carnival Of Souls, e Childhood's End minha música favorita do disco.
Foda! :)
Post maravilhoso! Tbm sou fanático pelo Kiss e sempre vi essa relação entre esses discos... Todos os dois são muito bons, especialmente o The Elder... Mas discordo em relação aos anos 80, principalmente o Asylum. Fora o visual, a banda tá excelente e o disco tem músicas ótimas e excelente produção. Até é uma idéia para um post no meu blog... rsrs
Uma correção: me parece que quando o Unplugged aconteceu a banda já havia gravado o CoS. Mas posso estar errado. Bom parabéns pelo excelente post!
Fantástico o post, eu sou daqueles fãs dos anos 70 e inicio de 80 do Kiss...com máscaras...e só voltei a comprar um album deles no Psyco circus...que na minha opinião, tirando as controvérsias se foi ou não gravado pela formação original é um ótimo dico (para o meu gosto)
curo muito o The Elder e concordo com vc em relação ao Creatures
em relação a Beth...eu adoro essa música..a letra é bem rock..e qto a I was made for loving you foi o primeiro vinil do Kiss (album dynasty) que comprei em 1980...eu adoro essa música...mostra para o bee gees como se faz...mas realmente não era rock do Kiss
abs a todos
Adoro os teus comentários cara
Continue a fazer este blog maravilhoso cheio de cultura musical
Olá amigo(s) e dono(s) desse blog...
Venho aqui sugerir uma maneira de colocarmos nossas postagens em conjunto,ou seja, em vez de fazermos varias postagens em blogs diferentes de um mesmo álbum... colocariamos a mesma postagem (upload) em blogs diferentes, isso, pensou eu, até colaboraria para que a postagem não expirasse, devido a uma quantidade maior de pessoas q "baixariam" aquele álbum divulgado em vários blogs.
Independente de sua concordância comigo ou não, estarei colocado no meu blog [http://amakina.blogspot.com]A MÁQUINA DE FAZER SONHOS, todos os uploads que estiverem disponíveis, independente do blog em q estejam sendo colocados à disposição, um link para os mesmos.
Espero poder contar com vcs...
Obrigado...
Long Live Prog Rock...
Já tinha o Canival of Souls e sempre gostei. Agora o The Elder foi um surpresa, pois sempre ignorei a maioria dos discos do Kiss do anos 80.
Boa.
Craca
Parabens pelo blog - concordo GNG.
Meus albuns prediletos:
1)Creatures of the Night
2)The Elder
3)Revenge
4)Carnival of Soul
5)Destroyer
2 Citados no seu post e tem muito Bob Ezrin na minha lista...
Flavio
Muito bom seu blog. Ao contrário de muitos blogs de rock, onde os caras só colocam os discos, sem nenhum texto, o seu traz informações de primeira e uma análise de cada disco muito bem fundamentada. Parabéns! Quanto ao Kiss, concordo sobre o The Elder: é um grande disco que nunca recebeu o devido valor.
Em relação ao outro, já pertence a uma fase do grupo que eu acho muito ruim. O Kiss, para mim,acabou depois de Creatures Of The Night.
Grande abraço
Apesar de eu não gostar muito do Kiss é um ótimo tópico! As informações e comentários são de grande valor!
Abraços!
Dagda, puxa, fazia um tempão que não vinha aqui, mas é sempre bom estar por aqui. Sensacional o texto desta postagem. Olha, tb gosto do Kiss, principalmente Destoyer (clássico), Love Gun, Alive II (show de bola), The Elder e o insuperável Creatures Of The Night (obra-prima). Bom, o som do Kiss pra quem ouve Alive II é contagiante e os albuns que citei acima são realmente muito bons. No mais, apesar de gostar do Kiss, digo que é uma das bandas mais sem vergonha do planeta. Foi como vc disse, pra onde o vento soprar, lá estarão eles, mesmo que na sua maior parte, fazendo um rockinho bem feijão com arroz. Mas ainda assim, o Kiss é um show a parte.
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